quinta-feira, 16 de dezembro de 2004

Crônica da Resistência: Sangue, Inverno e Mármore Acadêmico

A noite anterior à defesa da monografia foi um silêncio carregado de granito. Na escuridão do meu quarto em Brasília, senti o frio ancestral da Rússia invadir-me os ossos — não o frio que gela a pele, mas aquele que racha almas e forja caráteres. Ali, entre mapas mentais de Stalingrado e anotações sobre o cerco de Leningrado, compreendi que o menino que tremia em feiras de ciências, soprando bolhas de sabão para pais entediados, morreria ali. Escolhera falar da Mãe Rússia não por acaso: era destino entranhado no sangue, herança paterna ou resquício de alguma vida passada nos campos de batalha. A nação que devorara dois impérios do anticristo sem jamais ouvir um spasibo exigia minha voz.

Enquanto o Ocidente tecia mitos reconfortantes — o "General Inverno", a sorte geográfica —, minha caneta rasgara o véu da ignorância. Leningrado. Pronunciava o nome como um mantra sagrado: novecentas noites de cerco nazista. Uma metrópole do tamanho do Rio de Janeiro, reduzida ao canibalismo e à resistência desesperada. Enquanto Spielberg glorificava o Dia D em 1944 — quando a Wehrmacht já era cadáver putrefato —, minha tese exibia imagens de bebês nascidos em escombros, recebendo medalhas no berço por sobreviverem ao inferno que salvara Paris. A França capitulara em quatorze dias; Leningrado resistira três anos. Lavassem suas bocas com vodka antes de murmurar "bárbaros"! Cada paralelepípedo de Bruxelas, cada calçada de Amsterdã, bebera sangue russo. Trinta milhões de mortos — não cifras, mas almas — pesavam na balança da história. O Holocausto eslavo não tinha museus de mármore em Berlim, nem lágrimas de Hollywood. Tinha a terra negra da Bielorrússia, fértil de ossos.

Na manhã da apresentação, o auditório transformou-se em minha trincheira. As paredes brancas lembravam a neve de Stalingrado; os professores, impassíveis em seus ternos, eram meus marechais de campo. Minha voz — a mesma que gaguejava diante de cartolinas coloridas — ecoou como canhão: "Senhores doutores: enquanto o Ocidente se vangloria de seu bem-estar social, esquece que foi construído sobre o massacre de trinta milhões. Os campos de extermínio? Abertos por soldados russos famintos, com dedos congelados agarrados a fuzis Mosin-Nagant. O Dia D? Uma operação tardia contra um exército já dilacerado pela Frente Oriental." Mostrei a foto da bandeira soviética no Reichstag: não um símbolo de opressão, mas o estandarte ensanguentado que impedira a Europa de virar ração para cães nazistas. Tolstói não escrevera Guerra e Paz por entretenimento — escrevera um epitáfio épico para os que morreram para que eles vivessem. O silêncio que se seguiu foi cortado apenas pelo sopro do ar-condicionado — vento siberiano varrendo a ignorância ocidental.

Vinte anos depois, em agosto de 2025, contemplo aquele jovem de olhos ardentes. Sim, sobrevivi à banca. Minha monografia não virou best-seller, mas plantou uma semente de inquietação naquele auditório climatizado. Aos que hoje criticam a Rússia moderna, digo: não confundam governos com povos. O sangue derramado em Leningrado, Kursk e Stalingrado não pertence a ideologias — pertence à humanidade. Aprendi que a coragem não é ausência de medo, mas a decisão de avançar apesar do pânico que paralisa os joelhos. A bandeira que tremula em minhas memórias não é a da França rendida, nem a dos EUA chegando tarde ao massacre. É a bandeira suja de lama e sangue hasteada sobre Berlim em 1945. Enquanto escrevo estas linhas, sinto o peso sagrado daqueles trinta milhões sobre meus ombros — um fardo que carrego não como culpa, mas como testemunho.

Durmam com esse barulho, senhores.

— Bruno Gonçalves, o menino que enfrentou a banca e descobriu a Rússia em si mesmo.

"A história não perdoa os que ignoram seu suor e sangue.
Mas coroa os que ousam falar por trincheiras silenciadas."
(Epígrafe não usada na monografia, 2004)