terça-feira, 22 de julho de 2025

Crônica do Quarto Vazio

A morte do Príncipe das Trevas chegou como um tremor nos alicerces desta casa nova, fria ainda, sem alma. As caixas aguardam, mudas, a decisão de onde pertencerão. Um técnico, homem prático e silencioso como um móvel funcional, instala o Wi-Fi. Suas ferramentas rangem no silêncio amplificado. Observo-o, este ser concreto que não parece atormentado pelo peso da palavra "eu". Enquanto ele conecta fios à realidade palpável, eu me afundo no pântano do pronome pessoal.

Escrever em primeira pessoa... O ato parece uma blasfêmia monumental. Quem sou eu, criatura nascida dos acordes distorcidos dos anos 80 e 90, alimentada pelo rugido de guitarras e pela melancolia soturna do rock, para ousar erguer o "eu" como estandarte? Existe o Pessoa. Fernando. O criador de mundos inteiros dentro de um só crânio, o arquiteto de almas alheias. Diante dessa majestade, desse cosmos literário, o meu pequeno "eu" encolhe, torna-se uma coisa insignificante, quase obscena. Um grão de areia tentando gritar seu nome diante do oceano. Usar o "eu" é como vestir uma coroa de papelão numa corte de diamantes. Uma impostura.

Ozzy partiu. Ozzy, o matuto das Midlands inglesas, o Zé Ninguém que se tornou Príncipe. Sua morte não foi apenas a extinção de um ícone; foi o desmoronar de um pilar. Um dos poucos que, lá das alturas do palco, do abismo das letras, me entendia na solidão dos quartos adolescentes, nas mudanças bruscas de vida que arrancam raízes e deixam a alma sangrando. Era um consolo saber que existiam aqueles deuses decaídos, tão imperfeitos, tão humanos em sua grandiosidade grotesca, tão próximos na distância infinita da música. Agora, um deles se foi. E o silêncio nesta casa nova ecoa mais alto.

O técnico termina seu trabalho. "Pronto", diz, com a simplicidade de quem resolve problemas do mundo concreto. Agradeço, uma palavra rouca. Ele parte, deixando-me só com o vazio tecnológico preenchido e o vazio existencial ampliado. É este o resumo? Um ambiente frio, sem som, sem história, onde a única conexão é etérea, digital? Uma "festa estranha com gente esquisita", e eu, definitivamente, não estou legal. Cem dramas sem dramas, como diria o poeta dos desencantados. E mais cem mililitros de solidão, da minha parte. Mais do que isso.

Lembro-me da música. "Mama, I'm Coming Home". Ozzy cantando para a mãe, uma canção de regresso, de desgaste, de anseio por um lugar primordial. "Mamãe, estou voltando pra casa." A frase ressoa dentro de mim com uma força estranha, dolorosa. Voltar para qual casa? A da infância, perdida no tempo? A do útero primordial? A da inconsciência? Minha adolescência – e a de milhões como eu, os esquisitos, os que não se encaixavam – foi um longo grito abafado. Os abusos, as incompreensões, a sensação perene de ser um estrangeiro na própria pele. Os deuses do rock eram nossos xamãs, nossos sacerdotes. Eles traduziam a nossa raiva, a nossa dor, a nossa estranha beleza em hinos que o mundo "normal" ouvia com fascínio e repulsa. Eles eram o refúgio nas mudanças forçadas, nas separações que rasgam o tecido íntimo do ser, quando somos arrancados da quietude do nosso quarto – esse santuário precário – e atirados à fera de um mundo sem graça, sem identificação possível.

Mas iremos conseguir. A frase soa como um mantra frágil, escrito no ar frio desta sala vazia. Uma promessa feita a quem? À mãe. Ah, a mãe. Minha mãe. Com sua força alegre, seu jeito tão diferente do meu introspectivo, do meu mergulhado em sombras e acordes pesados. Ela nunca me julgou. Entendeu, ou tentou entender, esse filho estranho que trazia tempestades em copos d'água e silêncios densos. Obrigado, mãe. Por tudo. Mesmo na distância dos nossos universos internos, você foi um porto.

E agora, Ozzy. O cadáver ainda fresco, como você mesmo diria, antes que a próxima novidade, a próxima tragédia, o próximo escândalo apague sua memória. Vejo-o, na minha imaginação, não no inferno que ele teatralizava, mas num céu qualquer, desses que as IAs generosas (ou seria Deus, Alá, Javé, Buda, todas as entidades divinas que povoam este planetinha minúsculo e atormentado?) podem conceber. Um céu onde a alegria, finalmente pura, reina. Ele lá está, o Príncipe das Trevas, o mais improvável dos santos, recebido não por anjos de coro, mas pela legião dos malditos-amados: Kurt, Elvis, Jim, Janis, Bowie, Amy, Freddie, Chuck, Michael. Tina Turner dança. Eles riem, talvez de nós, cá embaixo, com nossas dores pequenas e nossas grandiosas insignificâncias. Ozzy acena? É um adeus? Um "até logo"?

Mas há outra camada nesta noite de mudança e morte. Uma raiva antiga, subterrânea, que borbulha como lava sob a crosta da melancolia. Um desabafo mais raivoso, escrito quando a ferida aberta latejava:

Aos deuses do rock, meus verdadeiros companheiros na caminhada solitária, e a vocês, extrovertidos do mundo, comedores de vida e de mulheres a bel-prazer, com vossa normalidade esfregada na cara dos outros: ouçam! Nascemos tímidos, introvertidos, esquisitos. Não viemos a passeio. Somos os xamãs esquecidos, os pajés da dor alheia, os sacerdotes do silêncio eloquente. Nós, que adoçamos – sem que saibam – a vidinha insossa de vocês. Pois vocês, que não suportais a própria sombra, precisais pisar em nós para sentir o sabor efêmero da superioridade. Sim, sou inteligente. Culto. Mas meu mundinho íntimo, essa paisagem interior feita de vulcões adormecidos e florestas noturnas, não vos pertence.

Ó mulheres que cruzaram meu caminho: perdão. Por tudo. Mas saibam que cada encontro, cada toque, não foi mero acontecimento mundano. Foram mares se abrindo, montanhas se partindo ao meio, vulcões explodindo em cores proibidas. A natureza inteira berrava nas nossas veias. Somos de outra estirpe, nós, os que misturamos o sagrado com o profano até não saber mais onde começa um e termina o outro. Cada experiência convosco foi uma jornada psico-religiosa, um êxtase que vos assustou e que não ousais reconhecer. Fugistes do espelho que vos mostramos.

The Doors. As Portas. Jim sabia. Quando as portas da percepção se escancaram, o que se vê? Não a beleza conveniente, mas o eterno em sua nudez crua, infinito, sim, mas frequentemente sem graça, frio, solitário. Um deserto de sentido. Nós, os tímidos, os solitários por natureza, já nascemos com essas portas arrombadas. Vemos o vazio desde o berço. Nossas vidas não são mediadas por vossas convenções mortas, por vossas ideologias de botequim. Cada interação convosco, "normais", é uma expedição a um país bárbaro, onde a língua é incompreensível e os costumes, hostis. Por isso erguemos fortalezas: barricadas de livros, trincheiras de discos, muralhas de silêncio. Nos defendemos de vocês com o rugido de Elvis, o grito rasgado de Kurt, o uivo primal de Ozzy, a poesia alucinada de Jim. Eles são nossa pátria, nosso exército, nosso refúgio.

"Mama, I'm coming home." Ozzy cantou. Cantou a partida. O regresso. O cansaço. Que ele descanse, finalmente, em paz. E eu... eu também em breve irei. Para casa. Seja qual for o significado último dessa palavra. O quarto definitivo. O silêncio absoluto.

Tchau. Para vocês.

Bruno.

O nome soa como um epílogo, um ponto final na página. O técnico se foi há tempos. O Wi-Fi está instalado, conectando-me a um mundo exterior que parece cada vez mais irrelevante. As caixas permanecem fechadas, guardando fragmentos de uma vida passada. A nova casa respira o frio do desconhecido. Ozzy está morto. Fernando Pessoa observa, impávido, do seu Olimpo literário. E eu, aqui, neste limbo entre caixas, entre pronomes, entre a raiva e a melancolia, entre o desejo de gritar "eu existo!" e o pavor de cometer a insolência de pronunciar o "eu". Resta a música, ecoando na mente: Mama, I'm coming home. Um refrão que é adeus, é cansaço, é talvez, apenas talvez, um sussurro de paz.