sábado, 16 de agosto de 2025

Doutor Abel, Seu Abel, o Belinho

Doutor Abel, Seu Abel, o Belinho

Ao Senhor Doutor Abel Gonçalves

Papai que falta você faz...me lembro de cada detalhe da sua existência. O brilho nos seus olhos ao falar de Nelson Rodrigues, Fernando Pessoa, Kafka, de Beatles, música clássica, Sinatra, de quase se emocionar ao falar do seu glorioso Fluminense, mesmo seu filho mais velho, herderro do seu legado, você sempre tratou a todos com a humildade em pessoa. 

Você sempre insistiu desde a tenra infância, em que seus filhos tivessem contato com livros. No início era grau 1, você nos dava coisas pra estimular nossas mentes. Joguinho de totó, futebol de botão, livrinhos de fazer figuras, pecinhas infantis de teatro, matinês de cinema, quebras cabeças, concertos no teatro nacional, livrinhos infantis tipo galinha ruiva etc..

E assim fomos, eu e meu irmão.  Mas você do alto da sua sabedoria,  foi no cerne da questão: seu filho mais velho (eu) era mais razão, e seu filho mais novo era mais emoção. 

Você a partir dessa descoberta foi levando seus filhos, direcionando, o mais velho pra um caminho e seu mais novo pra outro, afinal voce era uma sumidade, O Doutor Abel.

Eu sendo a razão da coisa, você tratou de acalmar minha mente. Comigo era mais cérebro né papai? E com meu irmão mais coração. 

Para acalmar nossas mentes, não gostávamos muito de nos tocar, abraçar, você percebeu desde o início. Enquanto meu irmão, a emoção, voce abraçava mais , ele gostava de ficar na sua barriga e de sentir seus " purrús" sentado no seu colo. Era sua lorpinha fofa e preferida. 

Eu era o cérebro. Vosso primogênito

Você era todo desajeitado com as mãos,  desengonçado. A gente saía em família pra "jantar fora", de acordo com suas palavras, eu e você pizza de quatro queijos com bastante gorgonzola, aquele cheiro forte, e minha mãe e vitor a outra metade da pizza de Califórnia ou lombinho com abacaxi, doce, como a vida. E você só olhando observando  calado. Pois você já tinha tudo maquinado no bom sentido na palavra. 

Você percebeu que seu primogênito nasceu puxado a ti. Era diretora do colégio Santa Rosa toda hora ligando la em casa, "Venham aqui, o Bruno apanhou hoje, caçoaram do Bruno etc..."Até chegar ao ponto de mamãe me fazer o "rei " da celebração de festa junina, ou algo religioso, nao lembro, pra acalmar as massas. Afinal, eu era seu rei. Uma festa comprada, ajeitada para que eu fosse o rei, como so mamae ultra-protetora sabia.

Quando meu Flamengo perdia, especialmente em FlaxFlu, você dava uma batidinha na porta do meu quarto com aquele sorrisinho maroto e dizia: "Hoje vocês perderam né?" 

Mas voce sabia da história do irmão mais novo do seu Fluminense, do meu Flamengo. Você sempre soube da importância do Flamengo e do legado de Zico, meu super herói. Você mesmo com a rivalidade nunca chamou o meu Flamengo, por amor a seu filho mais velho, 

de mulambo e urubu. E pelo contrário, me contava das inúmeras histórias do FlaxFlu, o único jogo que começou 40 minutos antes do nada, e começou a me falar de um tal de Nelson Rodrigues, alguém que futuramente seria outro meus super-heróis. E quando crianças nos chamava pra brincar de gol a gol com bola de isopor no corredor do prédio da minha infância. 

E me convidava pra ir ao cinema, porque no cine Brasília e nos finados cine karim e academia, estava passando algo que você queria transmitir a mim.

Me lembro do nosso menino mais novo, o turquinho, chamado assm por uma Sra Ada, sua mae, meu irmao mais novo, Senhor Vitor de Freitas Santo Gonçalves, quando era criança, de adorar sentar no seu colo e brincar com sua barriga.

Eu puxei seu lado. Nossa relação era mais cerebral, sem muitos toques. Quando você me chamava pra "conversar sobre a vida" era um ritual de iniciação, especialmente depois ir ao cinema, me indicar algum livro pra ler.

Você adorava comer né? E adorava brincar fazer carinho na minha barriga e no meu irmao, e fazer "purrú" e nos chamar de lorpas. Só seus filhos sabem o que é essa brincadeira linda que voce fazia com a gente, nas nossas barrigas, com seus "purrús".

E seu único vício era comer. Minha mãe, vossa esposa, a Senhora Maria Helena Santos Gonçalves, a matrona dona do nosso lar, cozinheira de mão cheia, fazia todos os pratos mais gostosos do mundo até ficarmos estafados. Mas você como uma criancinha levada, pouco tempo após um almoço feito por Dona Maria Helena, um banquete de delicias digno de Imperio Romano, se sentava na sala na sua cadeira.

Após o farto banquete, voce sem camisa, com seu chinelinho, exatamente igual ao meu, nao igual em modelo mas sem ser de dedo pois lhe dava agonia, igual a mim, voltava pra cozinha e perguntava: "Mas não tem uma bananinha aí? " E dona Maria Helena Santos Gonçalves, brava, lhe indagava: "Mas já quer comer de novo? Assim não dá ".

Seu único vício era comer coisas gostosas, brincar e explicar sobre futebol comigo, conversar "sobre a vida" e comer bananinha ou algum docinho após o almoço. 

Até um dia meu irmao quis adotar uma cachorrinha, a Tessi. Você nao aguentou os latidos estridentes da bichinha, mas adotou um gatinho chamado Bob, seu terceiro filho, nosso terceiro irmão, o terceiro Lorpa. Esse,já casa antiga dis arredores de valparaiso, uma multidão de gatos entraram e saíram sob a impávida liderança de Bob, o último dos felinos a nos deixar. Mas sobre eles escrevo depois. 

Me lembro especialmente dessa época  de um filme chamado ,"Trainspotting", de 1996. Eu tinha 16 anos. Você me chamou pra ver esse filme no cine Brasília dizendo que era o retrato da minha geração. Eu disse que nao tinha nada a ver comigo, mas voce insistiu. Disse: "É importante que voce veja e escape disso". Eu vi ,e voce estava certo.

Depois sua afeição pela Rússia aflorou. Seu irmao mais novo claramente tinha mais talento com o xadrez, e voce o intruziu aos mestres Kasparov, Karpov, ao clube de xadrez de Brasília. E a mim me lembro num festival de cultura e filmes de russos. Eisenstein no cinema, Dostoievski e Tolstoi na literatura. Pois, sua missão estava quase cumprida. Até um dia eu decidir no último semestre da faculdade fazer uma monografia sobre a "nossa Rússia ". Foi seu ato final, como um menino exultante de alegria me ajudou. Seu filho passou com louvor, pouquíssimo tempo depois voce adoeceu e nos deixou. Mas sua existência estava cumprida.

Meu pai, para muitos a entidade Seu Abel , Doutor Abel, para minha mãe o Belinho, você não merecia a morte lenta e o sofrimento que te obrigaram a passar. Seu mundo, igual seu filho mais velho, está na cabeça. E justo na cabeça, com o início do Alzheimer e os esquecimentos, zombaram de você. E você aguentava impávido as humilhações, voce sabia que seu fim estava próximo mas suportou tudo com sua nobreza.

Aí no céu ao lado de Deus, mesmo você se dizendo ateu com orgulho, tenho certeza tens acesso a todas as bananinhas, docinhos, vitórias do seu Fluminense, pizzas de queijo gorgonzola e em breve, não sei quando, irei aí pra cima, aonde você estiver no céu, para "conversarmos sobre a vida", ouvirmos Beatles, lermos um livro, vermos um filme do Bergman, Scorcese, Kubrick, Hitchcock, me ensinar como ser um homem de verdade vendo um faroeste do Sérgio Leone, e após todo esse ritual, iremos comer um docinho, uma bananinha, um sorvete, um marrom glacê, uma goiabada com queijo e darmos risada de tudo. 

Em breve estarei aí papai. Nao sei quando, quem decide é Deus, mas não vai demorar e estarei aí no céu com você fazendo cosquinha em mim fazendo "purrú" na minha barriga ao som de Beatles e conversando sobre todos os assuntos de interesse da vida. "Conversar sobre a vida" como voce falava. Me aguarde papai, Doutor Abel, Seu Abel, Belinho. Em breve me juntarei a ti.


Att Bruno 16 de agosto de 2025

O príncipe das trevas morreu

Olá, bom dia. Acordei recentemente com a notícia de que o Príncipe das Trevas partiu. Ué, como assim? Alguém que, reza a lenda, até comeu um morcego num show?

Ozzy, você veio a este mundo apenas para nos fazer sorrir, né? Um cara que não tinha escrúpulo nenhum em falar de suas desgraças. Um trabalhador braçal levando uma vida de merda na classe operária de Birmingham, uma cidade cinzenta, fria, sem graça, da sua Inglaterra. Mas você quis algo mais. “Ah, sei lá, vou montar uma banda.” E você criou o Black Sabbath. E daí o resto é história.

Graças a ti, legiões de adolescentes tímidos como eu, nos anos 80/90, tiveram voz. Mas você também... nos deu trabalho, né?

Por que tanta autodestruição, tanto álcool e drogas em escalas industriais? Isso te fez nos deixar mais cedo. Mas o céu, onde você agora está, com os deuses do rock — Elvis, Kurt Cobain, Amy Winehouse, Freddie Mercury, Chuck Berry, Tina Turner, Jerry Lee Lewis, Ray Charles e tantos outros — está mais feliz. Sua simplicidade, seu sorriso, sua capacidade de brincar com suas próprias desgraças deram voz a milhões.

Quem escreve este texto em sua homenagem é só mais um deles: aquele adolescente típico, criado nos anos 80/90, tímido, mas que se virava.

E você era um dos nossos porta-vozes. Por que nos deixar tão cedo? Nos deixar órfãos?

Mas se cuide aí no céu, com Deus, e não invente mais de se autodestruir. Aí no céu deve estar uma festa, com seu sorriso, sua simplicidade. Deus, Alá, Jesus, Buda, Javé etc. devem todos estar juntos, dançando por sua causa, né? Ozzy... para de brincar conosco, menino!

Olha aí quem está te esperando no céu, ao lado de Deus. Só gente boa, menino! Vai na paz. Mas você poderia ter ficado um pouquinho mais com a gente aqui embaixo, né? Você fará falta a milhões, embora o céu e as estrelas estejam brilhando mais por sua causa.

Att.,
Bruno Gonçalves – Agosto de 2025

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A menina do chaveiro Laranja.

Minha menina. Quem me conhece sabe a quem me refiro. Não irei expô-la. Quando, há 20 anos, você surgiu na minha vida, nas fotos as pessoas achavam que éramos irmãos de sangue, de tão parecidos que éramos. Meu pai, pouco antes de adoecer, ficou encantado por ti. Ele disse: “Bruno, você ganhou na Mega-Sena”. Ele me falou isso quando você conheceu minha família na churrascaria Pampa, ao lado do Park Shopping.

Me lembro como se fosse hoje nosso primeiro encontro, no Cine Brasília. Fomos ver um festival de filmes do Woody Allen. Tudo isso começou numa sala de bate-papo do UOL, quando não existia WhatsApp e os celulares eram tijolos. Seu “nick” era Virginia Woolf. E vimos, em seguida, dois filmes do Woody Allen. Durante a sessão dupla, você foi se aproximando de mim. Pegou na minha mão, ficamos de mãos dadas. Você encostou sua cabeça no meu ombro.

Após os filmes, você me perguntou, com a carinha mais fofa do mundo, se podia me beijar. Eu disse sim. Esse “sim” mudou minha vida — para o bem e para o mal.

Eu, todo tímido e acuado, disse: “Olha, eu nem moro no DF, não sei dirigir, moro no Valparaíso, preciso de ônibus para voltar pra casa”. Mas você respondeu: “Ué, e daí? Eu adorei você. Tem um restaurante perto da minha quitinete, na Asa Norte, que só toca rock, e eu sou viciada em queijo gorgonzola. Lá eles fazem um fondue fantástico. Topa ir comigo?”.

Perguntar a Bruno Gonçalves se gosta de rock e depois oferecer queijo gorgonzola... você roubou minha alma em cinco segundos. A essa altura, eu já estava totalmente entregue a você.

Mas me lembro de, nesse mesmo encontro, a gente se desafiar com joguinhos mentais. Fomos conversando sobre música primeiro. Você sabia dizer a história, a biografia, o mapa genealógico das bandas que eu amo. Além de saber geografia, as capitais do mundo. Você me deu uma aula sobre cada detalhe dos integrantes dos Beatles, Nirvana, Rolling Stones, do movimento punk, The Clash, Sex Pistols, Ramones... além de saber cada detalhe sobre o Jim, do The Doors.

Você sabia tudo, mas eu respondia tudo e te perguntava mais. A gente ria até dar gargalhadas. Mas nesse xadrez lúdico e fofo, o resultado já estava traçado: empate. Seria impossível alguém dar xeque-mate no outro, pois tudo que eu sabia, você já tinha as respostas, e vice-versa.

Estávamos numa mesa, num ambiente aberto. Estava frio, era meio do ano em Brasília. Enquanto esperava você retornar do banheiro, pensei comigo mesmo: “Não é possível... Deus existe. É demais pra mim essa injeção de tanta dopamina de uma vez”.

Você quis me desafiar com mais jogos mentais, com o sorriso mais lindo do mundo. Não me furtei desse desafio, respondendo na lata sobre tudo o que você me perguntava — de filmografia de Woody Allen, Bergman, Tarantino, Hitchcock, Kubrick, etc., além das bandas. Daí você me disse: “Você é lindo, fantástico, um cavalheiro, gosta de tudo que eu gosto. Topa mais uma rodada de queijo gorgonzola e vamos pra minha casa?”. Eu fiquei hipnotizado, sem acreditar.

Durante a segunda rodada de queijo gorgonzola, você me disse: “Você se chama Bruno e é de Gêmeos, né?”. Eu disse sim, mas que não entendia nada de signos ou horóscopo. Você me perguntou a data exata em que nasci, eu disse: “23 de maio de 1980”. Você sorriu, puxou sua carteira de identidade e me mostrou: “Eu sou de 23 de maio de 1981 e tenho um irmão chamado Bruno, que amo de paixão”.

Eu fiquei abismado. Você me convidou a passar a noite na sua casa. Eu aceitei, não tinha como não aceitar.

Passamos a noite juntos, fizemos o que tínhamos de fazer. Eu me senti o super-homem. E assim fomos por meses. Me lembro exatamente do dia em que você me deu a chave da sua residência, num chaveiro em forma de laranja. Você disse: “Bruno, você tem permissão de entrar e sair da minha casa quando quiser”.

Íamos muito ao Parque Olhos D’Água, perto da sua casa, pois você adorava o verde, tocar nas árvores, ver animais — eu também.

Até que um dia você me pediu para conversar. Disse: “Bru Bruno” — você me chamava de “Bru Bru” — “preciso te contar algo. Eu sou bipolar”. Eu respondi: “Tá bem, ué, te amo do mesmo jeito. Bipolar é aquele negócio de que a pessoa uma hora está muito alegre e outra hora muito triste?”. Você respondeu, olhando sério, com aquele rostinho branco e olhos verdes, a coisa mais linda do mundo: “Bru Bru, é muito mais pesado do que pensa”. Eu disse: “Ok, te amo” — e mal sabia o que era bipolaridade.

Até você ter a primeira crise: foi no shopping, gastou seu salário inteiro e entrou no cheque especial. Comprou um monte de roupas — para mim, para sua família em Minas Gerais — enfim. No dia seguinte, acordou se sentindo péssima, me ligou chorando e gritando: “Bru Bru, vem aqui, não estou bem!”. Eu fui te acudir. Fomos à sua psiquiatra; ela te deu um atestado e um laudo de 15 dias. Eu comecei a entender o que era bipolaridade.

Você melhorou. Fomos visitar sua família em Minas. Ao ver seu irmão Bruno, você caiu no choro e disse: “Deixa eu tirar uma foto de vocês, meus dois amores, meus Bru Brus”.

Seu irmão é um doce de pessoa, assim como sua família. Até um dia meu “cunhado” Bruno me chamar e dizer: “Olha, você é uma pessoa fantástica, ela te ama. Mas sou irmão mais velho dela. Uma hora ela vai surtar, mas de uma maneira que não sei se você está preparado”. Eu respondi: “Eu faço tudo pela %%%%%%. Nossa, como eu amo sua irmã”. Meu cunhado Bruno me abraçou, chorando, e me disse: “Você é um anjo, xará, mas você ainda não viu nada. É só o início. Mas obrigado por cuidar da minha maninha”.

Passaram-se meses, até você me ligar dizendo que estava com pavor, que alguém estava te perseguindo. Saí correndo do Valparaíso ao seu encontro, com meu irmão e minha então ex-cunhada. Ao entrar no seu apartamento, você estava no chão, em posição fetal, chorando, dizendo que estava ouvindo vozes e gritando por seu Bru Bru.

Te acudi. Te acolhi. Até chegar um fatídico dia em que você me olhou e disse: “Meu Bruzinho, meu Bru Bru, você não merece isso. É demais para você me suportar”. Eu me acabei em lágrimas, choramos abraçados. Devolvi seu chaveiro em formato de laranja. E, a partir desse dia, nunca mais ouvi falar de você. Mas sei de notícias que não irei falar para não expô-la.

Estou morando sozinho. Lá se vão 20 anos desde que te conheci. Minha vida se resume a antes e depois de ti. Minha menina. Não faço ideia se você está viva ou morta, mas te amo. Minha menina.

A ti, esteja onde estiver, te amo muito. Hoje completam 20 anos.

Seu Bru Bru é um antes de ti e outro pós-ti. Que Deus esteja do seu lado, caso você esteja nesse mundo ou no além. Minha menina fofa. Meu tudo, que tomaram de mim.

Att.,

Bruno

Agosto de 2025

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Diplomacia de Portaria

O expediente na embaixada tinha terminado como tantos outros: com e-mails respondidos, carimbos bem dados e um leve cheiro de café já frio no corredor. O rapaz voltou para casa como volta todo funcionário depois de um dia sério — gravata afrouxada, pasta na mão e aquele cansaço de quem mediou conflitos que não são seus.

Mas bastou atravessar o prédio em que reside para perceber que ali, na portaria, a diplomacia ganharia uma nova missão.

Ele era novato no prédio e o porteiro, desses que ainda guardam nos olhos o frescor de um morador novo. Mas o detalhe não estava no rosto, e sim no peito: uma camisa do Flamengo, com o vermelho e o preto estufados como bandeira em dia de vento forte.

— Que camisa é essa, do melhor do mundo? — perguntou o funcionário, sem o menor interesse em manter neutralidade.

O porteiro riu, e não riu sozinho: chamou o colega, como quem convoca reforço para batalha de trincheira.

— Vem cá, Juarez! Olha só o que eu achei… esse aqui é vascaíno também!

O outro se aproximou com o cuidado de quem vai examinar um documento secreto. Antes que a tensão se instalasse, o diplomata lançou a frase que selou o armistício:

— Vascaíno também é gente, ué.

Foi o suficiente para que o riso invadisse a portaria como torcida em final de campeonato. E, no rastro dessa alegria, surgiu a ideia: convocar o irmão do diplomata, o Vítor, vascaíno de berço e de bravura, para uma disputa de conhecimentos futebolísticos. Não sobre política internacional, mas sobre quantos gols o Edmundo fez no Brasileirão de 97 ou qual o placar da final de 2000 no Maracanã.

Naquele instante, não havia porteiro ou diplomata, Flamengo ou Vasco, gravata ou boné. Só três homens dividindo histórias, provocações e o milagre brasileiro de transformar qualquer diferença em assunto para piada.

Porque é assim que o Brasil negocia seus tratados invisíveis: na esquina, na calçada, na portaria de um prédio, com a bola imaginária rolando e as risadas correndo soltas. E, enquanto houver conversa de futebol, talvez não falte paz neste país.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Crônica do Quarto Vazio

A morte do Príncipe das Trevas chegou como um tremor nos alicerces desta casa nova, fria ainda, sem alma. As caixas aguardam, mudas, a decisão de onde pertencerão. Um técnico, homem prático e silencioso como um móvel funcional, instala o Wi-Fi. Suas ferramentas rangem no silêncio amplificado. Observo-o, este ser concreto que não parece atormentado pelo peso da palavra "eu". Enquanto ele conecta fios à realidade palpável, eu me afundo no pântano do pronome pessoal.

Escrever em primeira pessoa... O ato parece uma blasfêmia monumental. Quem sou eu, criatura nascida dos acordes distorcidos dos anos 80 e 90, alimentada pelo rugido de guitarras e pela melancolia soturna do rock, para ousar erguer o "eu" como estandarte? Existe o Pessoa. Fernando. O criador de mundos inteiros dentro de um só crânio, o arquiteto de almas alheias. Diante dessa majestade, desse cosmos literário, o meu pequeno "eu" encolhe, torna-se uma coisa insignificante, quase obscena. Um grão de areia tentando gritar seu nome diante do oceano. Usar o "eu" é como vestir uma coroa de papelão numa corte de diamantes. Uma impostura.

Ozzy partiu. Ozzy, o matuto das Midlands inglesas, o Zé Ninguém que se tornou Príncipe. Sua morte não foi apenas a extinção de um ícone; foi o desmoronar de um pilar. Um dos poucos que, lá das alturas do palco, do abismo das letras, me entendia na solidão dos quartos adolescentes, nas mudanças bruscas de vida que arrancam raízes e deixam a alma sangrando. Era um consolo saber que existiam aqueles deuses decaídos, tão imperfeitos, tão humanos em sua grandiosidade grotesca, tão próximos na distância infinita da música. Agora, um deles se foi. E o silêncio nesta casa nova ecoa mais alto.

O técnico termina seu trabalho. "Pronto", diz, com a simplicidade de quem resolve problemas do mundo concreto. Agradeço, uma palavra rouca. Ele parte, deixando-me só com o vazio tecnológico preenchido e o vazio existencial ampliado. É este o resumo? Um ambiente frio, sem som, sem história, onde a única conexão é etérea, digital? Uma "festa estranha com gente esquisita", e eu, definitivamente, não estou legal. Cem dramas sem dramas, como diria o poeta dos desencantados. E mais cem mililitros de solidão, da minha parte. Mais do que isso.

Lembro-me da música. "Mama, I'm Coming Home". Ozzy cantando para a mãe, uma canção de regresso, de desgaste, de anseio por um lugar primordial. "Mamãe, estou voltando pra casa." A frase ressoa dentro de mim com uma força estranha, dolorosa. Voltar para qual casa? A da infância, perdida no tempo? A do útero primordial? A da inconsciência? Minha adolescência – e a de milhões como eu, os esquisitos, os que não se encaixavam – foi um longo grito abafado. Os abusos, as incompreensões, a sensação perene de ser um estrangeiro na própria pele. Os deuses do rock eram nossos xamãs, nossos sacerdotes. Eles traduziam a nossa raiva, a nossa dor, a nossa estranha beleza em hinos que o mundo "normal" ouvia com fascínio e repulsa. Eles eram o refúgio nas mudanças forçadas, nas separações que rasgam o tecido íntimo do ser, quando somos arrancados da quietude do nosso quarto – esse santuário precário – e atirados à fera de um mundo sem graça, sem identificação possível.

Mas iremos conseguir. A frase soa como um mantra frágil, escrito no ar frio desta sala vazia. Uma promessa feita a quem? À mãe. Ah, a mãe. Minha mãe. Com sua força alegre, seu jeito tão diferente do meu introspectivo, do meu mergulhado em sombras e acordes pesados. Ela nunca me julgou. Entendeu, ou tentou entender, esse filho estranho que trazia tempestades em copos d'água e silêncios densos. Obrigado, mãe. Por tudo. Mesmo na distância dos nossos universos internos, você foi um porto.

E agora, Ozzy. O cadáver ainda fresco, como você mesmo diria, antes que a próxima novidade, a próxima tragédia, o próximo escândalo apague sua memória. Vejo-o, na minha imaginação, não no inferno que ele teatralizava, mas num céu qualquer, desses que as IAs generosas (ou seria Deus, Alá, Javé, Buda, todas as entidades divinas que povoam este planetinha minúsculo e atormentado?) podem conceber. Um céu onde a alegria, finalmente pura, reina. Ele lá está, o Príncipe das Trevas, o mais improvável dos santos, recebido não por anjos de coro, mas pela legião dos malditos-amados: Kurt, Elvis, Jim, Janis, Bowie, Amy, Freddie, Chuck, Michael. Tina Turner dança. Eles riem, talvez de nós, cá embaixo, com nossas dores pequenas e nossas grandiosas insignificâncias. Ozzy acena? É um adeus? Um "até logo"?

Mas há outra camada nesta noite de mudança e morte. Uma raiva antiga, subterrânea, que borbulha como lava sob a crosta da melancolia. Um desabafo mais raivoso, escrito quando a ferida aberta latejava:

Aos deuses do rock, meus verdadeiros companheiros na caminhada solitária, e a vocês, extrovertidos do mundo, comedores de vida e de mulheres a bel-prazer, com vossa normalidade esfregada na cara dos outros: ouçam! Nascemos tímidos, introvertidos, esquisitos. Não viemos a passeio. Somos os xamãs esquecidos, os pajés da dor alheia, os sacerdotes do silêncio eloquente. Nós, que adoçamos – sem que saibam – a vidinha insossa de vocês. Pois vocês, que não suportais a própria sombra, precisais pisar em nós para sentir o sabor efêmero da superioridade. Sim, sou inteligente. Culto. Mas meu mundinho íntimo, essa paisagem interior feita de vulcões adormecidos e florestas noturnas, não vos pertence.

Ó mulheres que cruzaram meu caminho: perdão. Por tudo. Mas saibam que cada encontro, cada toque, não foi mero acontecimento mundano. Foram mares se abrindo, montanhas se partindo ao meio, vulcões explodindo em cores proibidas. A natureza inteira berrava nas nossas veias. Somos de outra estirpe, nós, os que misturamos o sagrado com o profano até não saber mais onde começa um e termina o outro. Cada experiência convosco foi uma jornada psico-religiosa, um êxtase que vos assustou e que não ousais reconhecer. Fugistes do espelho que vos mostramos.

The Doors. As Portas. Jim sabia. Quando as portas da percepção se escancaram, o que se vê? Não a beleza conveniente, mas o eterno em sua nudez crua, infinito, sim, mas frequentemente sem graça, frio, solitário. Um deserto de sentido. Nós, os tímidos, os solitários por natureza, já nascemos com essas portas arrombadas. Vemos o vazio desde o berço. Nossas vidas não são mediadas por vossas convenções mortas, por vossas ideologias de botequim. Cada interação convosco, "normais", é uma expedição a um país bárbaro, onde a língua é incompreensível e os costumes, hostis. Por isso erguemos fortalezas: barricadas de livros, trincheiras de discos, muralhas de silêncio. Nos defendemos de vocês com o rugido de Elvis, o grito rasgado de Kurt, o uivo primal de Ozzy, a poesia alucinada de Jim. Eles são nossa pátria, nosso exército, nosso refúgio.

"Mama, I'm coming home." Ozzy cantou. Cantou a partida. O regresso. O cansaço. Que ele descanse, finalmente, em paz. E eu... eu também em breve irei. Para casa. Seja qual for o significado último dessa palavra. O quarto definitivo. O silêncio absoluto.

Tchau. Para vocês.

Bruno.

O nome soa como um epílogo, um ponto final na página. O técnico se foi há tempos. O Wi-Fi está instalado, conectando-me a um mundo exterior que parece cada vez mais irrelevante. As caixas permanecem fechadas, guardando fragmentos de uma vida passada. A nova casa respira o frio do desconhecido. Ozzy está morto. Fernando Pessoa observa, impávido, do seu Olimpo literário. E eu, aqui, neste limbo entre caixas, entre pronomes, entre a raiva e a melancolia, entre o desejo de gritar "eu existo!" e o pavor de cometer a insolência de pronunciar o "eu". Resta a música, ecoando na mente: Mama, I'm coming home. Um refrão que é adeus, é cansaço, é talvez, apenas talvez, um sussurro de paz.