Doutor Abel, Seu Abel, o Belinho
Ao Senhor Doutor Abel Gonçalves
Papai que falta você faz...me lembro de cada detalhe da sua existência. O brilho nos seus olhos ao falar de Nelson Rodrigues, Fernando Pessoa, Kafka, de Beatles, música clássica, Sinatra, de quase se emocionar ao falar do seu glorioso Fluminense, mesmo seu filho mais velho, herderro do seu legado, você sempre tratou a todos com a humildade em pessoa.
Você sempre insistiu desde a tenra infância, em que seus filhos tivessem contato com livros. No início era grau 1, você nos dava coisas pra estimular nossas mentes. Joguinho de totó, futebol de botão, livrinhos de fazer figuras, pecinhas infantis de teatro, matinês de cinema, quebras cabeças, concertos no teatro nacional, livrinhos infantis tipo galinha ruiva etc..
E assim fomos, eu e meu irmão. Mas você do alto da sua sabedoria, foi no cerne da questão: seu filho mais velho (eu) era mais razão, e seu filho mais novo era mais emoção.
Você a partir dessa descoberta foi levando seus filhos, direcionando, o mais velho pra um caminho e seu mais novo pra outro, afinal voce era uma sumidade, O Doutor Abel.
Eu sendo a razão da coisa, você tratou de acalmar minha mente. Comigo era mais cérebro né papai? E com meu irmão mais coração.
Para acalmar nossas mentes, não gostávamos muito de nos tocar, abraçar, você percebeu desde o início. Enquanto meu irmão, a emoção, voce abraçava mais , ele gostava de ficar na sua barriga e de sentir seus " purrús" sentado no seu colo. Era sua lorpinha fofa e preferida.
Eu era o cérebro. Vosso primogênito
Você era todo desajeitado com as mãos, desengonçado. A gente saía em família pra "jantar fora", de acordo com suas palavras, eu e você pizza de quatro queijos com bastante gorgonzola, aquele cheiro forte, e minha mãe e vitor a outra metade da pizza de Califórnia ou lombinho com abacaxi, doce, como a vida. E você só olhando observando calado. Pois você já tinha tudo maquinado no bom sentido na palavra.
Você percebeu que seu primogênito nasceu puxado a ti. Era diretora do colégio Santa Rosa toda hora ligando la em casa, "Venham aqui, o Bruno apanhou hoje, caçoaram do Bruno etc..."Até chegar ao ponto de mamãe me fazer o "rei " da celebração de festa junina, ou algo religioso, nao lembro, pra acalmar as massas. Afinal, eu era seu rei. Uma festa comprada, ajeitada para que eu fosse o rei, como so mamae ultra-protetora sabia.
Quando meu Flamengo perdia, especialmente em FlaxFlu, você dava uma batidinha na porta do meu quarto com aquele sorrisinho maroto e dizia: "Hoje vocês perderam né?"
Mas voce sabia da história do irmão mais novo do seu Fluminense, do meu Flamengo. Você sempre soube da importância do Flamengo e do legado de Zico, meu super herói. Você mesmo com a rivalidade nunca chamou o meu Flamengo, por amor a seu filho mais velho,
de mulambo e urubu. E pelo contrário, me contava das inúmeras histórias do FlaxFlu, o único jogo que começou 40 minutos antes do nada, e começou a me falar de um tal de Nelson Rodrigues, alguém que futuramente seria outro meus super-heróis. E quando crianças nos chamava pra brincar de gol a gol com bola de isopor no corredor do prédio da minha infância.
E me convidava pra ir ao cinema, porque no cine Brasília e nos finados cine karim e academia, estava passando algo que você queria transmitir a mim.
Me lembro do nosso menino mais novo, o turquinho, chamado assm por uma Sra Ada, sua mae, meu irmao mais novo, Senhor Vitor de Freitas Santo Gonçalves, quando era criança, de adorar sentar no seu colo e brincar com sua barriga.
Eu puxei seu lado. Nossa relação era mais cerebral, sem muitos toques. Quando você me chamava pra "conversar sobre a vida" era um ritual de iniciação, especialmente depois ir ao cinema, me indicar algum livro pra ler.
Você adorava comer né? E adorava brincar fazer carinho na minha barriga e no meu irmao, e fazer "purrú" e nos chamar de lorpas. Só seus filhos sabem o que é essa brincadeira linda que voce fazia com a gente, nas nossas barrigas, com seus "purrús".
E seu único vício era comer. Minha mãe, vossa esposa, a Senhora Maria Helena Santos Gonçalves, a matrona dona do nosso lar, cozinheira de mão cheia, fazia todos os pratos mais gostosos do mundo até ficarmos estafados. Mas você como uma criancinha levada, pouco tempo após um almoço feito por Dona Maria Helena, um banquete de delicias digno de Imperio Romano, se sentava na sala na sua cadeira.
Após o farto banquete, voce sem camisa, com seu chinelinho, exatamente igual ao meu, nao igual em modelo mas sem ser de dedo pois lhe dava agonia, igual a mim, voltava pra cozinha e perguntava: "Mas não tem uma bananinha aí? " E dona Maria Helena Santos Gonçalves, brava, lhe indagava: "Mas já quer comer de novo? Assim não dá ".
Seu único vício era comer coisas gostosas, brincar e explicar sobre futebol comigo, conversar "sobre a vida" e comer bananinha ou algum docinho após o almoço.
Até um dia meu irmao quis adotar uma cachorrinha, a Tessi. Você nao aguentou os latidos estridentes da bichinha, mas adotou um gatinho chamado Bob, seu terceiro filho, nosso terceiro irmão, o terceiro Lorpa. Esse,já casa antiga dis arredores de valparaiso, uma multidão de gatos entraram e saíram sob a impávida liderança de Bob, o último dos felinos a nos deixar. Mas sobre eles escrevo depois.
Me lembro especialmente dessa época de um filme chamado ,"Trainspotting", de 1996. Eu tinha 16 anos. Você me chamou pra ver esse filme no cine Brasília dizendo que era o retrato da minha geração. Eu disse que nao tinha nada a ver comigo, mas voce insistiu. Disse: "É importante que voce veja e escape disso". Eu vi ,e voce estava certo.
Depois sua afeição pela Rússia aflorou. Seu irmao mais novo claramente tinha mais talento com o xadrez, e voce o intruziu aos mestres Kasparov, Karpov, ao clube de xadrez de Brasília. E a mim me lembro num festival de cultura e filmes de russos. Eisenstein no cinema, Dostoievski e Tolstoi na literatura. Pois, sua missão estava quase cumprida. Até um dia eu decidir no último semestre da faculdade fazer uma monografia sobre a "nossa Rússia ". Foi seu ato final, como um menino exultante de alegria me ajudou. Seu filho passou com louvor, pouquíssimo tempo depois voce adoeceu e nos deixou. Mas sua existência estava cumprida.
Meu pai, para muitos a entidade Seu Abel , Doutor Abel, para minha mãe o Belinho, você não merecia a morte lenta e o sofrimento que te obrigaram a passar. Seu mundo, igual seu filho mais velho, está na cabeça. E justo na cabeça, com o início do Alzheimer e os esquecimentos, zombaram de você. E você aguentava impávido as humilhações, voce sabia que seu fim estava próximo mas suportou tudo com sua nobreza.
Aí no céu ao lado de Deus, mesmo você se dizendo ateu com orgulho, tenho certeza tens acesso a todas as bananinhas, docinhos, vitórias do seu Fluminense, pizzas de queijo gorgonzola e em breve, não sei quando, irei aí pra cima, aonde você estiver no céu, para "conversarmos sobre a vida", ouvirmos Beatles, lermos um livro, vermos um filme do Bergman, Scorcese, Kubrick, Hitchcock, me ensinar como ser um homem de verdade vendo um faroeste do Sérgio Leone, e após todo esse ritual, iremos comer um docinho, uma bananinha, um sorvete, um marrom glacê, uma goiabada com queijo e darmos risada de tudo.
Em breve estarei aí papai. Nao sei quando, quem decide é Deus, mas não vai demorar e estarei aí no céu com você fazendo cosquinha em mim fazendo "purrú" na minha barriga ao som de Beatles e conversando sobre todos os assuntos de interesse da vida. "Conversar sobre a vida" como voce falava. Me aguarde papai, Doutor Abel, Seu Abel, Belinho. Em breve me juntarei a ti.
Att Bruno 16 de agosto de 2025